segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O capuz da vergonha

A mãe deles foi infiel, engravidou deles e está coberta de vergonha (Os 2.5)
A mulher fez coisas muito feias. Foi longe demais. Infelicitou muita gente. Tudo veio à tona. De repente, todo mundo debaixo do sol ficou sabendo de suas sujidades. Agora, ela está coberta de vergonha. Não é para menos.
O capuz da vergonha é insuportável. Pode levar ao suicídio. Vergonha é sinônimo de opróbrio, de ignomínia e da desconhecida verecúndia. Significa desonra humilhante, rebaixamento público. É um sentimento penoso e inevitável.
Aqueles que não têm vergonha de pecar, mais cedo ou mais tarde, quando forem apanhados, terão de usar o capuz da vergonha.
Sabe-se bem da primeira vergonha da história humana. Uma vergonha dramática — a vergonha que tomou conta de Adão e Eva logo após a queda (Gn 3.7). Sabe-se da vergonha de Davi, de Pedro e do casal Ananias e Safira. Não são poucos os que se queixam do capuz da vergonha e confessam: “O meu rosto está coberto de vergonha” (Sl 44.15).
O capacete da salvação há de me proteger continuamente do capuz da vergonha!

Retirada de Refeições Diárias com o Sabor dos Salmos (Editora Ultimato, 2004)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Um credo para os fundamentalistas

É só uma sugestão. Acho que posso sugerir, pois fui criado numa denominação fundamentalista e mesmo que não pertença a ela hoje, continuo a ser chamado assim. Portanto, segundo meus críticos, devo entender razoavelmente do assunto.
Creio na inerrância das Escrituras. Isto não quer dizer que eu creio que a Bíblia foi ditada mecanicamente por Deus, que ela caiu pronta do céu, que sua linguagem é científica, que não há erros nas cópias, que as traduções são inerrantes (especialmente a King James), que as cópias em manuscritos existentes são inerrantes, que a Bíblia é exaustiva e que tudo que está na Bíblia é fácil de entender e interpretar. Quer dizer que eu acredito que os manuscritos originais foram infalivelmente inspirados por Deus e que, em conseqüência, a Bíblia é verdadeira em tudo o que afirma. Creio que pelas cópias existentes podemos ter certeza quase plena do que havia nos originais e que muitas das partes polêmicas e difíceis de interpretar não afetam a compreensão correta do todo.

Creio na divindade de Jesus Cristo. Isso não quer dizer que eu negue sua plena humanidade, a realidade de suas tentações, a sua preocupação com os pobres e as questões sociais. Não quer dizer que eu negue que ele foi gente de verdade, capaz de rir, de chorar, que passou por perplexidades e que aprendeu muita coisa gradativamente como as outras pessoas. Quer dizer tão somente que creio que ele era verdadeiro Deus e verdadeiro homem, muito embora eu não tenha todas as respostas para as perguntas levantadas pela doutrina das suas duas naturezas. Creio que sua morte na cruz tem eficácia para perdoar meus pecados, visto que não era um mero homem morrendo por suas próprias faltas. Sua vida, suas ações e seus movimentos podem servir de modelo para mim, embora sua religião não possa, pois ele não era cristão, como eu já disse em outra postagem aqui no blog.

Creio em todos os milagres que a Bíblia relata. Isso não quer dizer que eu acredite que milagres acontecem todos os dias, que milagres contemporâneos são indispensáveis para que eu acredite em Jesus Cristo, que Deus cura somente pela fé e que tomar remédio e ir ao médico é pecado. Também não quer dizer que eu acredite que os milagres narrados na Bíblia foram coincidências com fenômenos naturais, interpretados pelos antigos como ações de Deus, como uma enchente de barro vermelho no Nilo que parecia sangue, um tremor de terra exatamente no mesmo momento em que Josué mandou tocar as trombetas em Jericó ou um eclipse na hora que ele mandou o sol parar. Quer dizer que eu creio que os milagres bíblicos realmente aconteceram conforme estão escritos, que não são mitos, lendas, sagas, estórias ou midrashes. Creio que Deus, se quisesse, poderia fazê-los todos de novo hoje apesar de que, mesmo assim, os incrédulos continuariam a procurar outras explicações.

Creio na ressurreição física de Cristo de entre os mortos. Isso não quer dizer que eu coloque o corpo acima do espírito e nem que eu seja um ingênuo que ignora o fato que cadáveres não revivem cotidianamente. Também não quer dizer que eu ignore as tentativas de explicações alternativas existentes para o túmulo vazio, a falta do corpo de Jesus até hoje e a mudança de atitude dos discípulos. Também não quer dizer que eu acredito que Jesus hoje apareça diariamente às pessoas. Quer dizer que eu creio que ele realmente ressurgiu dos mortos e que vive eternamente com aquele corpo ressurreto e glorioso, com o qual retornará em data não sabida a esse mundo, para buscar os seus e julgar os demais. Creio que a ressurreição de Cristo é essencial para o Cristianismo. Se Cristo não ressuscitou fisicamente dos mortos, o Cristianismo é uma farsa.

Creio que somente mediante a fé em Jesus Cristo como único Senhor e Salvador é que as pessoas podem ser perdoadas e salvas. Isto não quer dizer que eu desconheça o fato de que existem pessoas de bem, honestas, sinceras e de boa conduta entre aqueles que não acreditam em Deus e muito menos em Cristo. Tampouco quer dizer que todos aqueles que têm fé em Jesus Cristo são perfeitamente bons, justos e santos. O que eu quero dizer é que somos todos pecadores, uns mais, outros menos, uns ostensivamente, outros em oculto, e que somente pela confiança no que Cristo fez por nós é que poderemos ser aceitos por Deus – e não por méritos pessoais. Neste sentido, acredito que fora da fé em Cristo não há salvação, perdão ou reconciliação com Deus.

Creio em verdades absolutas. Isto não quer dizer que eu ignore que as pessoas têm diferentes compreensões de um mesmo fato. Quer dizer apenas que, para mim, quando não se complementam, tais diferentes compreensões são contraditórias e uma delas – ou várias – devem estar erradas. Acredito em absolutos morais, em leis espirituais de natureza universal, em declarações unívocas e também que Deus se revelou de maneira proposicional nas Escrituras.

Creio em tolerância. Isto não quer dizer que eu seja inclusivista e relativista, mas simplesmente que não deixarei de me relacionar com uma pessoa simplesmente porque considero que ela está equivocada teologicamente. Para mim, a tolerância pregada pelo mundo moderno é aquela característica de pessoas que não têm convicções, que não têm opiniões formadas sobre nada e que vivem numa perpétua metamorfose ambulante. Eu acredito que é possível, sim, ter convicções profundas – especialmente na área de religião – e ainda assim se manter o diálogo com quem diverge.

Tem mais coisa a ser incluída neste credo fundamentalista, mas tá bom. O que eu quero mostrar é que tem muita gente que tem o mesmo credo acima, e que é fundamentalista sem saber. Alguns ultra-fundamentalistas vão achar que eu sou liberal.

• Augustus Nicodemus é pastor presbiteriano, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutor em interpretação bíblica pelo Westminster Theological Seminary, Estados Unidos, e autor de, entre outros, “O que Estão Fazendo com a Igreja” (Mundo Cristão).

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A feira da vaidade

É curioso como o imaginário da criança dá uma reviravolta quando ela deixa de ser criança: já agora são outros olhos que, ao olharem as mesmas cenas de antes, enxergam mais aguçadamente nas entrelinhas da história. Em nossa cultura, as crianças costumam crescer embaladas por histórias dominadas por imagens fantasiosas de castelos e palácios, habitados por gente fina que anda em carruagens, cuja boa sorte é realçada pelo contraponto marcado pela presença de alguns aldeões ou mendigos à margem da estrada.
Diferentemente da poesia que na infância eu entrevia em tais imagens, senti-me revoltado quando a suntuosidade majestosa dos palácios de São Petersburgo foi mostrada outro dia num documentário da tevê, em estarrecedor contraste com a narrativa de como, no início do século 18, a opulenta ex-capital da Rússia Imperial foi plantada nos baixios de um terreno pantanoso, a custo do sacrifício de milhares de vidas. Foi como se uma nuvem espessa me impedisse de apreciar a beleza artística da arquitetura que desfilava diante de meus olhos.
Entre os povos da antiguidade não foi diferente: jardins suspensos e esfinges e pirâmides... Nos nossos dias megatorres opulentas vão sendo plantadas, onde quer que jorre petróleo e onde quer que o palácio do consumismo impulsione o capitalismo egoísta e desordenado, qual na “feira da vaidade” da alegoria de Bunyan em “O Peregrino”. Diante dessa “feira”, sinto-me como Paulo na capital da Grécia, “indignado de ver a que ponto esta cidade está cheia de ídolos” (At 17.16, versão ecumênica da S. B. Canadense).
Fico triste ao contemplar a visão materialista do mundo, que supervaloriza e até incentiva o supérfluo, que gasta fortunas astronômicas na ostentação do poder, enquanto povos inteiros passam fome e não têm onde morar, enquanto missionários que se sacrificam para pregar o evangelho de Jesus dependem, o mais das vezes, de um sustento incerto que não lhes permite viver condignamente.
Não é bom que isso aconteça. Não é bom que deixemos a mentalidade do mundo invadir a mente e os hábitos do povo de Deus. Não podemos gastar sequer cinquenta reais com o que não é essencial enquanto esse valor, pequenino para nós, representa tanto para os que deixaram tudo e foram viver entre pessoas carentes de Deus e dos recursos mínimos necessários para a sobrevivência. Seria uma contradição do evangelho que pregamos.


• Antonio Carlos Wagner C. de Azeredo